Revolução

por Misha Gibson, que prefere revoluir

171 Todo Dia

Terça, 05 De Setembro De 2017 ás 06:00

Revolução

Revolução

Sou a caçula da minha família. Desde que me sei por gente, escuto as conversas da porta da cozinha, da sala ao lado, ou fingindo prestar atenção a tv. Quase nunca as pessoas vieram falar para mim sobre problemas de família, ou problemas de adulto. Falta de dinheiro, comportamentos inadequados de outras pessoas, brigas ocasionais, como gastar o dinheiro que sobrou. Quase sempre escutava 'Vamos' e tinha de ir. Meu voto sempre era café-com-leite.

Sei que de alguma maneira tentavam me proteger do resto do mundo. Eu não precisava entender que faltava o dinheiro, nem que fulano agiu errado, nem sobre o que brigavam, muito menos saber que tinha dinheiro sobrando. Eu não precisava tomar muitas decisões. Eu não precisava cuidar de ninguém além das minhas lombrigas e umbigo grandes.

Eu podia sonhar que vivia na minha loja de brinquedos e que eu tinha de fazer minhas obrigações para ganhar o que eu quisesse. Mas, como tudo na vida, a nossa visão muda com o passar do tempo. De repente (para muita gente), eu estava morando sozinha, comprando minhas coisas (e eu sabia pechinchar e procurar o que eu queria!), e mantendo um apartamento, lavando, passando, limpando, cozinhando. Ou quase isso.

E mesmo assim, ainda assim, eu sempre fui a caçula. Não precisavam falar para mim sobre doenças, sobre morte, sobre dinheiro, sobre problemas. Nunca precisaram falar sobre como as pessoas podem ser ruins, embora sempre falassem sobre como eu poderia ser se fosse ruim. Nunca me falaram que as pessoas na família brigam, divergem e muitas vezes não se entendem. Nunca me falaram que alguém sempre tem que ceder, embora eu sempre que tivesse que esperar a minha vez para tudo.

Hoje em dia, já com a idade que eu tenho (e tenho o bastante para saber que posso), com um pequeno que depende de mim, com preocupações do mundo real como dinheiro - e a falta dele, trabalho e relações humanas, ainda assim, ninguém me toma por alguém que pode resolver problemas, que pode ajudar e que pode querer diferente.

Não é que esteja reclamando. Eu até prefiro que essas coisas passem meio desapercebidas. Não sou muito de falar também. Mas, eu sei fazer uma cotação, eu sei barganhar e algumas vezes tomo decisões racionais. Eu sei dizer quando é preciso ir ao hospital, quando o carro precisa ir para a oficina e que trocar o carro sem dinheiro não é uma opção. Não vivo mais no mundo de Alice.

O caso é que para quebrar um paradigma é preciso mudança. É preciso sobrepor o antigo e exigir o novo. Isso nunca, em tempo algum, se deu de forma pacífica. Não estou criando caso e não estou sendo mimada. Não estou sendo intransigente e não estou pedindo demais. Só estou dizendo que a minha voz também conta. Nenhuma geração passou incólume deste dilema. E não sou eu que vou passar. Não sou a primeira e também não vou ser a última, só espero que o pequeno demore um tempo ainda. É  bom que ele saiba que a voz dele também é ativa embora seja um tanto menor. E isso não significa que não seja importante.

Eu sei que toda boa mudança tem que implodir. E acho que assustar as pessoas ao redor faz parte. Paciência. Não há transformação sem revolução: interna, externa e colateralmente. Eu não temo o novo. Eu temo o decrépito.


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