Deixando para trás

por Misha Gibson

171 Todo Dia

Terça, 19 De Agosto De 2014 ás 06:00

Deixando para trás

Deixando para trás

Os eventos da semana que passou, e deste ano em específico, me fazem ter um fluxo de pensamentos estranho que gostaria de desenvolver aqui. Ao saber da morte de Robin Williams e  depois de ouvir a notícia da morte de Eduardo Campos, minha mente se apegou ao que eles deixaram para nós. Eu não conhecia nada da vida deles, do último, não sabia nem que em sua família existiam políticos e juízes renomados. Soube que ele havia completado 49 anos, dias antes, na mesma matéria que anunciou sua morte. Do primeiro, não sabia da sua luta contra a depressão, não sabia que era casado, nem que tinha filhos já crescidos.

No entanto, soube da morte deles. E, a divulgação destes acontecimentos foi tão profuso e tão chocante, que me senti próxima a eles a ponto de imaginar o pensamento do que deixaram para trás nesta vida: 'Eu deixo para trás a depressão, o descaso com a minha dor, os dias insuportáveis a procura de algo para me distrair do câncer da alma'. 'Eu deixo para trás meus planos por fazer, os momentos com os filhos, o orgulho inerente no olhar da minha família'. Entenda que eu não os julgo pelo trabalho que tiveram. Não vou entrar no mérito se eles mereciam a fama e as glórias, posso ser muito tendenciosa uma vez que sou mais de falar de filmes e histórias do que política e vida real. E certamente o glamour de um espetáculo é muito mais reluzente do que a vida que os políticos brasileiros se autoproclamam merecedores e gananciosamente ostentam. Assim, não vou entrar no mérito se o trabalho deles era justo, bom ou correto.

O que eu quero desenvolver aqui é o que o ser humano abdica no momento da sua morte, qualquer que seja o meio em que ela se dê. O que é que a humanidade herda como expólio e o que é que as pessoas próximas do morto vão sentir falta ou lamentar. Duas visões tão distintas do mesmo fato gerador. A humanidade certamente sentirá falta do palhaço, da inteligência e da acidez da crítica do observador que é a própria função de um ator. A humanidade certamente sentirá a falta, como bem colocou um amigo meu, da renovação que o político tão novo trazia como promessa. As pessoas próximas sentirão a falta do pai, do amigo, do ente querido. Mas, certamente poderão até mesmo se sentirem aliviados do que essas pessoas queridas também podiam representar: o doente que custa a se reabilitar, o ausente cuja vida pública é mais importante e mais intensa do que a particular. Ainda, e mesmo assim, eles deixam a tristeza das promessas que suas vidas eram e não puderam ser cumpridas.

E estes pensamentos tão obscuros reverberam no meu dia-a-dia. Não que eu tenha ficado (mais) obscura, mas eu percebi que a gente dorme para morrer um pouquinho todo dia. Todo dia a gente dorme para deixar alguma coisa no passado. Eu já deixei no passado gente que amei muito, cadernos com escritos e rabiscos que já tiveram muito significado, ensinamentos que não me serviram (e serviram para que eu achasse outra direção), roupas, sapatos, bichos de pelúcia. E morri em cada despedida e renasci outra para um novo dia sem eles. E não deixo de pensar no quanto não foi um alívio para as pessoas que deixei morrer na minha história, para os cadernos, para os papéis, para os bichos de pelúcia, que eu partisse. Quais sentem a minha morte para eles, quais se lembram com a mesma saudade e quais se abençoam com um "Deus me livre e guarde". Eu morro para eles como eles morrem para mim? Espero que sim, espero que a minha passagem na vida dessas pessoas seja um círculo perfeito e nunca um triângulo agudo ou obtuso. Ou, que pelo menos seja uma espiral, não fechando o ciclo, mas dando voltas em mim mesma, com o meu novo eu de todo dia.

Parodiando um apresentador americano, subo na minha mesa imaginária, para prestar minha homenagem para os que se foram neste tão trágico ano. 'Oh, captain, my captain! Suas inexistências serão (res-)sentidas.' Que essas mortes, e tantas outras, além de nós entristecer possam nos fazer renascer com algum sentido novo. Que a gente deixe para trás o que já morreu e que deixe renascer e florescer também.


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